quarta-feira, 4 de julho de 2007

HELENA ALMEIDA - Breve abordagem à sua obra

HELENA ALMEIDA

Um nome de autor não é simplesmente um elemento de um discurso, ele exerce relativamente aos discursos, tanto os da escrita, como os discursos plásticos, um certo papel: assegura uma função classificativa; um tal nome permite reagrupar um certo número de obras, delimitá-las, seleccioná-las, opô-los a outras obras. Além disso o nome de autor faz com que as obras plásticas se relacionem entre si. O nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso ter um nome de autor, o facto de se poder dizer que “isto foi escrito , pintado ou fotografado por fulano”, ou que tal ou tal indivíduo é o autor, indica que esse discurso não é um discurso indiferente um discurso flutuante e passageiro, mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de uma certa maneira, e que deve pois ter um certo estatuto. O nome de autor não transita, como o nome próprio, do interior de uma determinada obra para o indivíduo real e exterior que o produziu, mas que de algum modo, circunda a obra delimitando-a, manifestando-lhe o seu modo de ser, caracterizando-a. Ele promove um certo conjunto de imagens, refere-se ao estatuto dessas imagens e discursos no interior de uma sociedade e de uma cultura. O nome de autor está também na rotura que se instaura num certo espectro artístico, e na afirmação de um certo modo de ser singular e peculiar. Tal como dizia Pablo Picasso: belo, é o que tem carácter.

A função de autor é assim caracterizada pelo modo de existir, de circular, e de funcionar de uma obra no interior de uma sociedade. E tanto mais ainda se o autor se transformar num transgressor. Ele é o resultado de uma operação complexa que constrói um certo ser racional. Tenta-se dar a este ser racional um estatuto realista: seria no indivíduo uma instância profunda, um poder criador, um projecto, um trabalho original.

Drawing, 1999

O que de facto faz de um indivíduo um autor, é a projecção que dele se faz no sentido dos traços que estabelecemos como pertinentes, como consequentes, dentro da coerência possível em termos estéticos, da determinação no sentido da prossecução do seu objecto ao longo do tempo.

A obra da artista tem coerência. Não se põe já a questão do juízo do bonito ou do feio, mas a análise da obra tendo em conta a personalidade da artista. Morelli por exemplo entende a coerência como a constância de modos figurativos, ou mais precisamente como recorrência de certos “ maneirismos” como por exemplo o modo de desenhar ou fotografar as mãos, ou quaisquer outras partes do corpo, como é o caso em Helena Almeida.

A pesquisa em arte faz-se directamente analisando a obra de arte no seu conceito estilístico e técnico. O seu trabalho é muito diversificado e é composto por pintura, escultura, desenho, gravura, e sobretudo fotografia. Evidenciou-se neste último registo, e tem sido aliás com grande intensidade que se tem debruçado nesta pesquisa estética de há uns anos a esta parte. Começa no início da sua carreira por apresentar uma pintura de cariz abstracto / geométrico, e desde logo se começa também a notar a tendência para pôr em causa a questão do próprio suporte. Encontram-se os primeiros indícios de deslocalização das próprias molduras para fora das telas. Faz instalações com diversos materiais, faz performances diversas, começam a surgir as primeiras telas habitadas por volta dos anos 70. Começa a utilizar o próprio corpo como suporte para o seu trabalho, tendo a ajuda preciosa do marido que funciona como o complemento indispensável à sua actividade artística. À semelhança de Lúcio Fontana começa também ela a provocar rasgões na tela, de tal forma, que obsessivamente parece querer entrar na próprio espaço e dele fazer parte integrante. È presumivelmente uma forma de desconstrução da obra, ou de outro modo o questionamento da relação e do posicionamento da própria artista face à tela. Daí também os títulos de“ Tela Habitada “, que denunciam de certo modo o enquadramento espacial e conceptual do seu trabalho. Dela diz o comissário e curador Delfim Sardo: - « Helena Almeida é uma artista singular, com um percurso único, e a vários títulos exemplar. Complexo na sua formulação, o método de trabalho de Helena Almeida desagua na utilização de fotografias a preto e branco, imagem de si mesma nas quais parece retratar-se a memória de uma acção, de uma performance. Falar do trabalho de Helena Almeida é uma tarefa difícil, porque a corporalidade, a relação com o espaço e a singularidade do seu processo criativo colocam interrogações e questões acerca da própria natureza do que vemos: trata-se de fotografia, ou de desenho por via de um diferente suporte? Será que é uma memória da pintura e da sua crítica, ou a massa deste corpo interroga a escultura e a espacialidade» ?

Drawing from de series “ O Atelier “

Helena Almeida tem um grande fascínio pelo negro. Não podemos dizer com segurança até que ponto poderá ter tido ou não influência de outros artistas, mas pela constância e determinação com que vem desenvolvendo o seu trabalho com base neste contraste poderoso, e nesta dualidade negro/branco, sugere-nos a obra desse outro grande artista americano, que fez parte da Escola de Nova York: Robert Motherwell, ou Franz Kline ou mesmo o francês Pierre Soulages. Este tipo de artistas que tem esta atracção intensa pelo negro, fazem-nos questionar o conceito da sua obra, no sentido em que o negro é o paradigma do trágico, do enigmático do misterioso e insondável. O corpo de Helena Almeida é frequentemente representado e transformado numa mancha negra. Julgo que é uma boa questão a de nos interrogarmos sobre qual o tipo de metáfora que a artista pretende abordar. Os movimentos do corpo, a sua coreografia parecem por vezes querer seduzir o observador. Ao contrário de Jorge Molder que é por vezes classificado como profundamente narcisista, Helena Almeida protagoniza um trabalho artístico que não incide de forma determinante, na questão da máscara, de auto- retrato, nem tem o carácter de personagem, nem de auto representação .A artista faz pintura através da fotografia, tendo como ponto forte a mancha, para a qual utiliza como pretexto o próprio corpo. Tem feito um trabalho de grande pesquisa, de grande depuração estética, até ter atingido o ponto de estabilização que se tem mantido estável até ao presente. O seu corpo torna-se pois num instrumento de criação, de espaço de pintura, de espaço plástico. O modo como constrói as suas imagens tem muito a ver, tanto com o cinema, como com a pintura ou a performance, ou mesmo a banda desenhada. Ela interage com uma série de códigos artísticos. De certo modo a sua obra é uma metáfora do silêncio e também da solidão; tem algo de paradoxal, já que se pressente quer pelo contexto e composição do seu trabalho, quer pela presença contínua do seu corpo, uma necessidade intrínseca de comunicação. A atracção pelo azul como forma de complemento estético do seu trabalho, significa por um lado uma mensagem simbólica de energia e espaço. Faz de algum modo lembrar as performances de um outro artista mundialmente famoso, que utilizava o elemento feminino como ponte de mediação artística, utilizando também o corpo feminino, mas desnudado, para funcionar como trincha humana, para ser mais uma alternativa de aplicar a cor azul, elevada por ele ao estatuto universal de sublimidade.- Yves Klein.

Dos Espaços B, 2006

A tela para Helena Almeida converteu-se numa figura antropomórfica. Isto é: o relacionamento da artista com aquele suporte artístico, desenvolveu-se de tal forma que,

tal como no homem primitivo cuja ligação á natureza tem características primordiais, em que homem e natureza fazem intrinsecamente parte do todo, assim a artista e a tela se confundem também, numa unidade essencial. Por outro lado o seu trabalho traduz-se já num signo como princípio estrutural do seu facto artístico. Já não deduz a sua metodologia de uma filosofia da arte ou de uma estética, mas da linguística. A questão refere-se à redutibilidade ou não redutibilidade da sua arte ao sistema da comunicação, e à possibilidade de distinguir um nível estético no âmbito da comunicação.É isso que de facto acontece em Helena Almeida que entra pois no campo da semântica.

O carácter geral da sua obra assume frequentemente aspectos Kafkianos. Isto na medida em que frequentemente insiste na mancha negra, bem como na transmutação que a conduz a uma espécie de metamerfose evolutiva, ou ao carácter soturno e dramático do seu trabalho. Tal é o aspecto profundo e marcante ao qual ninguém pode ficar indiferente. Por vezes secciona partes do corpo por forma a dar-lhes ênfase. Umas vezes dá enfoque aos pés como metáfora da base da realidade da vida. Outras vezes

enfatiza as mãos, como metáfora divina. É com as mãos que se sobe aos céus. As mãos em Helena Almeida assumem uma linguagem significativa na medida em que representam e traduzem aspectos comoventes do drama humano. As mãos imploram, as mãos rezam, as mãos anseiam, as mãos choram, as mãos trabalham, as mãos moldam, esculpem, pintam. Parece ressaltar constantemente do trabalho da artista uma certa ansiedade e angustia existencial. De resto a cor negra exprime isso mesmo, e faz lembrar por exemplo a figura de certas divas dos anos do pós-guerra, como por exemplo Juliette Greco, Greta Garbo, Marlène Dietrich ou Edit Piaff, numa época em que o existencialismo como filosofia era a dominante, e em que começava a tornar-se relevante a libertação da mulher, com expoentes como Simone de Beauvoir.

O trabalho da artista é extremamente original. Por isto mesmo as influências e as referências não são muito óbvias. Poder-se- ia dizer por analogia, que por exemplo o trabalho de Cindy Sherman poderia ter alguma aproximação, no sentido em que esta artista tem usado como meio de expressão o auto-retracto, mas só vagamente poderemos fazer esta comparação. De outro modo também podemos recordar, se é que é possível fazer o termo de comparação; com o trabalho de Robert Mapplethorp. O trabalho de Helena Almeida parece ser um trabalho minimalista e conceptual. Por outro lado existe uma sequência de imagens que nos leva a deduzir um movimento, como no tempo das primeiras imagens dos irmãos Lumière.

Helena Almeida criou um tipo de trabalho fortemente ideosincrático, e portanto muito pessoal, muito coreográfico. Ela recusa a ideia de espectáculo e portanto a ideia de representação. Pretende tão só fazer um quadro, usando em permanência o seu corpo em constante movimento performativo. Este tipo de trabalho implica necessariamente uma investigação continuada, e uma confrontação constante com o corpo e os seus limites.

Em Helena Almeida o trabalho, a persistência e a tenacidade , bem como a ajuda preciosa do marido, são-lhe muito úteis. Para além do mais teve a inteligência e a perspicácia de criar uma obra original, de características autorais que quer se goste quer não tem que ser respeitada.



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