quarta-feira, 4 de julho de 2007

HELENA ALMEIDA - RECENSÃO CRÍTICA

HELENA ALMEIDA: APRENDER A VER

(Por Ângela Molina)

Recensão crítica sobre a colectânea de trabalhos seleccionados por Angela Molina

-RUINAS

-MATER DOLOROSA

-PINTURA GESTADA

-NO INÍCIO, ESCORREGOU

-ESPELHO/REPETIÇÂO

-CELEBRAR A POSSIBILIDADE

“ A ruina ou espaço em branco que vemos na natureza-escreveu Ralph Waldo Emerson-está no nosso olho”. ... “ Nesse transporte pelos espaços em branco, que não podem distinguir-se do escuro nem da tela como espelho, a artista lisboeta Helena Almeida é capaz de viver e reviver nessa ruína, interiorizá-la,escutá-la no seu eco e devolvê-la à natureza a partir de um olho- o seu olho-palpitante , tão Emersoniano”. ...

Na longa tradição das artes do Ocidente, o uso de processos miméticos tomando como forma de comunicação privilegiada entre diversas formas de arte, foi tema de longos ensaios, e aqueles vem sendo há muito estudados.

Quando a fotografia deu os primeiros passos: então simples técnica servindo a pouco mais do que a representação pura e simples das coisas e dos objectos, a sua necessidade de se ancorar num qualquer referencial, levá-la-ia a buscar na pintura os seus modelos de representação. Vemos portanto nos primeiros anos da sua existência, registos tal como se viam nas paisagens do naturalismo. Temos portanto que a fotografia começa a pretender e a desejar apropriar-se de modelos anteriores, a ter vontade de abranger uma dimensão artística nova, já que as novas técnicas de arte não surgem do nada e portanto têm que se basear em dados e conceitos já adquiridos.

Nas últimas três décadas Helena Almeida utilizou o próprio corpo como possibilidade libertadora da expressão, rasgando ou ligando suportes, criando uma arte disciplinar onde os limites entre o desenho, pintura, escultura, e fotografia, são constantemente reavaliados.

Nesse percurso, noções como estar «além de..», «fora de», ou «dentro de» relacionam-se com uma prática que tenta fazer coincidir o gesto e a performance com a edificação de um teatro muito pessoal onde a sua própria imagem é o único elemento constante.

É uma espécie de invenção do próprio corpo. O corpo físico e o corpo da arte, num contexto em que sobressai um certo pessimismo, e mesmo um certo dramatismo. É uma interioridade em que a artista deixa entrever uma certa ansiedade. Em que transparece um certo carácter obsessivo, apesar de a artista paradoxalmente trabalhar lúdicamente o corpo, imprimindo-lhe emoção e energia, num circuito em que a coreografia e a poesia tem lugar.

Toda a obra desta artista é como uma imensa tela que recupera a ideia de pintura , que sofre da nostalgia da pintura, mas que renova numa espiral superior, através da fotografia, o espírito sublime da sua arte. Renova a compreensão que temos acerca do modo de ver, e também da perspectiva e da compreensão que temos do mundo.

Helena Almeida transforma o acto de pintar numa espécie de sacerdócio, mesmo numa espécie de eucaristia. Se lhe dermos o epíteto de sacerdotisa não será excessivo. Helena Almeida no inicio da sua carreira, nas suas obras, desmonta a estrutura lógica e a percepção da pintura. Dá a ver o que é suposto estar escondido, e vai transformando as telas através da inclusão de persianas ou da portadas em janelas concretas mas completamente disfuncionalisadas. São janelas em que não se vê nenhuma paisagem ou cena, mas unicamente as costas das telas. O suporte tradicional da tela era utilizado de uma forma concreta e original no seu trabalho.

Toda a riqueza gestual, feita com poucos recursos, faz do trabalho da artista, um trabalho de não muita distância entre o expressionismo e o minimalismo, que pode ser visto na obra com o título de: « Desenho Habitado», na qual as fotografias mostram o traço de tinta que se liberta do suporte com a ajuda da mão que gesticula sobre o espaço.

A sensação de profundidade criada pela luz, contribui para que a linha recta se transforme num campo tridimensional, já que o traço “ salta “ do papel ajudando a libertar o desenho, para se ir situar na palma da mão. Esta é uma imagem metafórica, já que a linha em questão é um fio tirado da crina de um cavalo.

Portanto a artista manipula mediante uma determinada lógica, determinados materiais.

Não procura fontes ou origens, mas estruturas de significação De baixo de cada imagem há sempre outra imagem. Nestas imagens os modos de proceder artísticos como por exemplo as “ performances “ de Helena Almeida, podem-se transpor e transformar em enquadramentos e encenações ,e de tal modo ela o faz, que acaba por transgredir os limites estéticos e os transformar em códigos culturais.

Na opinião de Owens não são só os meios que provocam clivagens no campo da estética, mas também os diversos níveis de leitura e de representação: o «impulso alegórico» desconstrói o paradigma simbólico da modernidade. A apropriação, a transitoriedade, a acumulação o hibridismo, a discursividade - estas estratégias múltiplas caracterizam grande parte da arte actual e distinguem-na das suas fases anteriores. Em Helena Almeida o seu trabalho confirma de certo modo este tipo de premissas, e como artista pós- moderna, inevitávelmente sofreu também todas estas influências.

A artista com as suas imagens fotográficas, propõe-nos auto-representações no sentido em que são imagens de si mesma. Mas é intrigante o facto de se intuir, que não será essa a característica que define a questão da estruturação e da diferenciação da sua obra. Será que a relevância do seu trabalho se pode atribuir à” performance”, ao gesto ou à atitude, ou será que a fotografia não passa disso mesmo? Ou ainda que a fotografia surge como um duplo da pintura e do desenho, embora como meio diferenciado, no sentido em que se pode atingir outro nível estético e outro nível de representação?

No seu trabalho: Estudo para um enriquecimento interior, uma série de seis fotografias a branco e negro relata o movimento de uma mão e um pincel que arrasta uma mancha azul sobre uma superfície branca”. ...

Aquela série de trabalhos, continua através da pintura um processo que foi iniciado no desenho. A diferença reside em que no caso do desenho o processo é inverso na medida em que é efectuado do presente para o passado, da representação para a realidade, no caso anterior é precisamente o oposto.

Isto é, a sequência representada pela pincelada azul sobre a série de fotografias, é feita de forma a que a artista a incopora e a simula engolir, o que faz pensar na situação de um ritual de comunhão com a arte, e de tal forma, que de facto efectivamente se cosumasse.

Noutra série de trabalhos e para terminar a década de 70, a série:-Sente-me, Ouve- me, Vê-me -, representam um conjunto que usam a fotografia e também uma peça produtora de som, que foi utilizada em Vê-me (obra exclusivamente sonora). Este tipo de procedimentos faz alargar o campo de acção da artista tornando o processo sensorial muito mais abrangente.

Esta obra sonora foi usada pelo coreógrafo e bailarino João Fiadeiro no espéctáculo I am here, apresentado no Centro George Pompidou em 2003. A obra consiste num diálogo com o trabalho de Helena Almeida, utilizando também outro tipo de suportes sensoriais.

As imagens com o título de “sente-me” mostram-nos os olhos cerrados, as imagens com o título de “ouve-me” mostram-nos os lábios cerrados (suturados, cosidos com linha) como se a artista tivesse necessidade de exprimir algo, mas estando disso impossibilitada.

Na série “voar”, trabalho feito já em tons azulados, a artista colocada em cima de uma cadeira, debruços, de braços abertos como quem pretende levantar vôo, parece insinuar uma pose de libertação, talvez como metáfora à própria liberdade da criação artística. No trabalho “Negro Agudo” sente-se a força pujante e poderosa do negro maçisso sobre a superfície branca, quase como um paradigma do trabalho do artista da Escola de Nova York, Franz Kline. A violência impressiva deste trabalho quase não deixa visibilidade à própria cabeça da artista Helena Almeida. É um trabalho pujante a que não se pode ficar indiferente.

Na série “Desenho Habitado” a beleza da pose das mãos, bem como a sensibilidade posta no acto de pegar no fio , ou na crina de cavalo, revelam a excelência do “fazer” , bem como da qualidade fotográfica da peça, elevando este trabalho a um nível daquilo a que poderemos chamar de : espiritualidade na arte.

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